Nem Estatal, nem Público - A experiência de ser Maria

Em 1982, não se discutia o Estatal, o Público ou o do Público. Essas não eram questões que dominavam nosso cotidiano, muito menos o meu, então aluna do curso de jornalismo e  recém-contratada como estagiária. Era outro século e me parece, outra vida.

A máquina Olivetti, o carbono, o telefone, a caneta, o papel, o telex eram ferramentas essenciais para nós. O mundo globalizado, como o conhecemos, começava a dar os primeiros passos. Foi nesse contexto que fui apresentada a  Radiobrás, mais precisamente a Rádio Nacional AM de Brasília e ao Viva Maria.

"Viva Maria, 120 minutos de informação e descontração, onde você homem também tem a sua vez. ", dizia a apresentadora.   De segunda-feira a sábado, de 10h ao meio-dia, o programa fornecia informações que iam "da viagem de Sarney à Itália, a denúncia de mortes no trânsito", como cita uma reportagem do Correio Braziliense de 13 de junho de 1986,sobre radialistas da cidade.

Foi ali, no Viva Maria,  que ouvi pela primeira vez a expressão “gillete press”. Mas, tive muita sorte em começar na produção radiofônica, em um programa que confirmava a vocação pública do rádio, capitaneado pela jornalista Mara Régia,dona da voz e autora da vinheta.  O programa surgiu como idéia no “ calor da ditadura”,  como diz Mara, e  “representou a resistência da vontade do fazer”. Em uma época em que até a cor de roupa que se usava denotava uma rebeldia , dizer um viva às Marias foi um gesto de coragem.

O rádio ou “a rádia”, como vi escrito em várias cartas falava para  Marias e o Josés sobre cidadania. Foi ali, em uma redação no primeiro andar de um prédio público que aprendi várias lições, entre elas, que o espaço para falar do artista da novela, do novo sucesso do cantor da vez, deve ser apenas o chamariz para se dizer ao ouvinte o que realmente importa. Não é esse o papel do rádio? Falar e ser ouvido?

Para Mara Régia, as donas-de-casas, empregadas domésticas, mulheres necessitadas e sem rosto, eram prioridade. Durante quase cinco anos do programa,  tive a grata experiência  do novo naquele pequeno núcleo de resistência. O formato ousado para a época , vejo e ouço hoje repetido em outras emissoras. Está na TV, no  Rádio. Todos, fórmulas de sucesso com inúmeros anunciantes.

O Viva Maria teve momentos de luta ao abrir o microfone para os movimentos de mulheres que se fortaleceram com a criação do Fórum de Mulheres do DF. Duas vezes por semana, a “mulherada” se reunia no auditório da empresa. além disso, fez campanha por amamentação, pela infância e juventude e fez o lobby do Baton  na Constituinte.

Em pleno periodo de redemocratização do país, o viva Maria encampou lutas, como  pela  criação da primeira delegacia de Atendimento da Mulher da capital federal, desencadeada pelo Caso Tais,estudante morta a facadas no Campus da Universidade de Brasília, em 1987, e cujo namorado Marcelo Bauer  foi apontado como principal suspeito.

Durante dez anos, o Viva Maria ofereceu aos ouvintes, uma programação de qualidade mesclada ao popular.  Elitista para alguns, mas na realidade pública, porque era “destinada ao povo”,como devem ser todos os que que têm o poder de dar voz a todos e não apenas ao "dono da voz".

De perguntar a quem tem um radinho como único contato com o mundo: você sabia que é um cidadão e que por isso merece conhecer tudo o que existe de bom? Seja  MPB, música erudita, instrumental ou ritmos regionais? Como saber a preferência musical de um ribeirinho ou um engenheiro? Como saber se gostamos de algo  se nunca o  experimentamos?

Naquela época, ministros não nos davam entrevista, mas as Marias e Josés nunca foram impedidos de falar. Eles pertenciam a movimentos negros, associações de donas-de-casa, sindicato dos empregados domésticos e muitos outros.  A constatação? Sim, havia um exercício sincero, diário e comprovado de cidadania na empresa, já nos idos dos anos oitenta.

Em 1989, fui para o  radiojornalismo. Alguns governos depois, várias orientações distintas, algumas extremamente "chapa-branca", outras mais coerentes, digito essas palavras em um computador, salvo no meu pen drive. Onde estão a Olivetti, a fita de rolo, o telex? Estão ali, guardados no século XX. E onde está a cidadania? Está onde sempre esteve: nas ondas do rádio. No programa que reúne pessoas, no que denuncia, no que ouve autoridade e população. No conflito e na mediação.

Trabalho em uma emissora pública pelo direito à informação, que discute multimídias, digitalização, fusão, que caminha para um momento novo, na tentativa de não perder o foco no cidadão.  Exercício difícil de manter a balança com dois pesos iguais, nem sempre isento de falhas.

Novos ventos sopram em pleno século XXI. Ouvimos movimentos sociais, prós, contras, a direita, a esquerda e até mesmo os em cima do muro. Continuamos ouvindo Marias e  Josés.  Eles nunca perderam sua voz, porque está nas pessoas o sentido do que realmente fazemos.

Uma vez em uma carta ao Viva Maria, uma ouvinte agradeceu porque antes sentia vergonha do nome e,  naquele momento,  tinha orgulho dele. Ela se chamava Maria. Esse com certeza é o nosso mais eficiente medidor de audiência e, para mim, a melhor definição da comunicação que devemos fazer.

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